Spoiler Alert!
Este texto contém spoilers pesados,
siga por sua conta e risco.
Como funciona a psique de um assassino? Qual sua motivação para cometer crimes bárbaros? O que leva uma pessoa aparentemente pacífica e sorridente a realizar um assassinato brutal e com requintes de crueldade? São perguntas cujas respostas exigem uma boa dose de estudo comportamental – e um estômago forte para aguentar os pormenores sórdidos. É esse o ponto de partida de Holden Ford (Jonathan Groff) e Bill Tench (Holt McCallany) em Mindhunter, série com produção executiva de David Fincher (conhecido por filmes como Seven, Clube da Luta, A Rede Social e Garota Exemplar), que a Netflix estreou sem alarde semana passada.
E que já é uma das melhores estreias de 2017.
Diferente de outras séries sobre serial killers, Mindhunter se propõe a mergulhar na origem dos estudos comportamentais que cunharam não apenas o termo em si, mas também foram o pontapé inicial para a criação de uma divisão no FBI exclusiva para o assunto, ajudaram a tipificar diversas formas de assassinato e inauguraram uma nova etapa na psicologia criminal. Seu diferencial, contudo, não se restringe a sua relevância temática. O roteiro sabe trabalhar muito bem os personagens que tem em mãos e suas particularidades. Mais do que traçar um olhar sobre a vida profissional de Holden e Bill e de como se deu seu experimento, o texto se preocupa em ligar isso a vida pessoal de cada um, mostrando as influências diretas de um campo no outro.
Holden Ford, por exemplo. É prazeroso assistir todo o processo que transforma o jovem professor da Quantico em um pesquisador que acaba por perder a si mesmo dentro de sua pesquisa. Groff, que está bem como nunca esteve anteriormente, tem em mãos um personagem excepcionalmente construído, em detalhes. Sua relação com Debbie, o fascínio que ele nutre pelo assustador Ed Kemper, a inusitada parceira com Bill entre altos e baixos e, no meio disso, um jovem curioso, com uma doçura na voz e um brilho nos olhos que vai sumindo pouco a pouco a medida que a história avança e Ford começa a mergulhar – de maneira irreversível – na cabeça dos assassinos que futuramente seriam identificados como serial killers.
Ao mesmo tempo em que é fascinante ver Holden sabendo exatamente como lidar com cada um dos participantes do experimento, é triste ver o jovem perdendo o semblante bonito, o sorriso no rosto, a doçura nos olhos – e isso só é possível porque Groff entende o personagem que tem em mãos, entende a jornada que o roteiro brilhantemente constrói pra si e se apropria disso tudo com força. Quando Debbie diz que ele perdeu a doçura e curiosidade que tinha quando eles se conheceram no bar, é como se ativasse o gatilho que seu cérebro precisava para entender que ele não era o mesmo. Os 10 minutos finais onde ele confronta Kemper o levam de volta ao ponto de partida do experimento, mas ele não era mais aquele que começou o processo– e nem o tinha como ser. A construção da sequência é avassaladora e só um diretor como Fincher conseguiria passar todo o medo, tensão e melancolia que a sequência pedia. O surto de Holden abre caminhos muito interessantes para o personagem e dá a Groff o ponto alto de sua carreira.
Bill Tench também tem sua própria trajetória pessoal, que embora não tão empolgante quanto a de Holden, também se mescla aos experimentos. Diferente de Holden, Bill não se deixa afetar tanto pelas palavras dos assassinos que entrevistam e, na verdade, muitas vezes tenta servir como a voz da razão, fazendo de tudo para impedir que Holden entre de vez no perigoso jogo psicológico que acontecia ali. Por mais que algumas vezes sua postura soe dura e até distante, há diversos momentos em que Bill mostra que realmente se importa com Holden e entende o quanto o experimento pode estar custando para o seu parceiro. Sua vida privada foi pouco abordada, mas a história nos deu a chance de conhecer sua esposa Nancy e o filho dos dois, Brian, que em vários momentos parece estar inserido no espectro de autismo. A série não chega a abordar isso com todas as letras (até porque, a ambientação é anos 70, época onde pouco ou quase nada se falava sobre), mas é um possível assunto interessante de ser abordado na segunda temporada.
Bem como um maior desenvolvimento de Wendy. Anna Torv é uma atriz fenomenal e por mais que sua personagem não tenha tanto tempo de tela quanto Bill e Holden, nos pequenos momentos em que tem, ela se destaca. É, inclusive, notável que em poucas sequências o texto consiga estabelecer a força da personagem. Primeiro, não é qualquer um que, nos anos 70, estava tão bem com sua orientação sexual diferente da “padrão”. Se hoje em dia já é complicado se falar sobre, na época era umas 10x mais. Mesmo assim, Wendy largou a companheira e um emprego fixo porque acreditava na pesquisa que estava sendo desenvolvido. É curioso como ela é a primeira a ver que existe algo maior e significativo por trás do que eles estão fazendo, mas ela também parece ser a mais afetada quando, no season finale, a situação descamba pra uma irreversível pena de morte.
A cena do elevador onde Wendy e Holden se confrontam sobre o acontecido é uma das melhores do seriado porque sintetiza exatamente o quanto aquele estudo afetou a todos eles muito mais do que esperavam. Nem Ford, nem Tech e nem a doutora sabiam o caminho que estavam tomando. Ninguém pode discutir o quanto aquilo é importante cientificamente falando, mas vendo uma Wendy arrasada, um Bill voltando a ser amargo e um Holden surtado e sem qualquer vestígio do jovem radiante de outrora, fica o questionamento, ao menos enquanto obra de ficção, se foi um preço válido a se pagar.
Tecnicamente, a série é impecável. O tom é quase todo escuro, beirando o claustrofóbico e são pouquíssimos os momentos de cor/luz, o que casa perfeitamente com a proposta do roteiro. A ambientação dos anos 70 é pensada em cada detalhe e nada parece fora do lugar. A direção de Fincher nos dois primeiros e nos dois últimos episódios é essencial para manter o ritmo perfeito, nunca acelerado demais, nunca parado demais, sempre se comportando como se todo o programa fosse um grande quebra-cabeça, montado pedaço a pedaço, o que contribui para o que é o maior trunfo da série: Sua capacidade de imersão.
Não são poucos os momentos em que eu esquecia do mundo ao redor e ficava completamente preso ao que a série mostrava. Todas as entrevistas com os criminosos são momentos de tensão extrema, mesmo que, naquele momento, você saiba que serão usadas “apenas” palavras, o que só comprova, mais uma vez, a capacidade da série de fazer algo grandioso com o aparentemente simples. Transformando a cabeça perturbada de psicopatas em uma mórbida e melancólica história, Mindhunter é daquelas joias raras que aparecem na TV de tempos em tempos, sem muita explicação, sem muito alarde, mas que aquecem o coração de qualquer um apreciador do gênero e prova porque o mesmo, apesar de muitos tropeços, ainda consegue surpreender. Que venha a 2ª temporada.
Outras observações pontuais:
– Cameron Britton está incrível como Ed Kemper e espero que ele seja lembrado nas premiações.
– Eu já era um fã de David Fincher, agora sou ainda mais. O segundo Emmy vem!
– Não foram poucas as vezes em que eu quis socar a cara do Smith.
– Aquele plot do gato com a Wendy só serviu mesmo para assustar a gente.
– Todos os assassinos e seus casos eram assustadores, mas Kemper e Brudos foram os que mais mexeram comigo. E a cena do sapato vai ficar um tempo na cabeça.
– Aos que estão se perguntando, sim, haverá uma 2ª temporada, que já foi confirmada antes mesmo da 1ª ser exibida.
– A abertura não foi tão boa quanto a de outras séries originais do canal, mas ainda assim, é muito bem feita.
– Tem alguma forma de assistir isso e não terminar com a cabeça desgraçada? Me contem se for o caso.