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Dia da Secretária: A Corajosa Karen Page (Demolidor)

Por: em 30 de setembro de 2015

Dia da Secretária: A Corajosa Karen Page (Demolidor)

Por: em

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A profissão de secretária é uma daquelas onde a presença feminina é majoritária. Por isso mesmo, é uma profissão cercada de estereótipos. O mais negativo deles é aquele que reforça a competição entre mulheres, na qual a jovem secretária se torna a amante do patrão casado, normalmente uma personagem objetificada e sem background. Quantas vezes não vimos esse tropo por aí, nas novelas, nos filmes e no imaginário popular? Felizmente, hoje temos muitos exemplos interessantes de secretárias na ficção que contrariam estes estereótipos, como a Karen Page, personagem de Demolidor, série da Marvel Cinematic Universe (MCU) em parceria com Netflix. Se você acompanha os quadrinhos, entretanto, não espere encontrar exatamente a mesma personagem. A série oferece a Karen mais voz e coração, pois nos quadrinhos ela foi jogada na gigantesca vala comum das personagens femininas indefesas e trágicas que são meras motivações para o herói.

Karen surge na série como a primeira cliente pro bono do escritório de advocacia Nelson & Murdock (N&M), empresa dos jovens e idealistas Foggy Nelson e Matthew Murdock (este último é a identidade secreta do Demolidor). Ela descobriu evidências de lavagem de dinheiro durante seu trabalho como secretária na construtora Union Allied. Motivo pelo qual se tornou alvo de uma conspiração que envolve os grandes chefões do crime de Hell’s Kitchen. Primeiro, tentaram incriminá-la por assassinar um colega de trabalho e até tentaram matá-la. Felizmente N&M conseguiu retirar as acusações que pesavam contra ela e o Demolidor a salvou da morte certa. Sem emprego e grata aos novos amigos, Karen se torna secretária de Foggy e Matt, ajudando-os a livrar Hell’s Kitchen da ganância dos poderosos. Não se engane: Se por um momento ela parecia a típica Donzela em Perigo, o que se segue a partir daqui vai passar muito longe deste estereótipo.

Um grande acerto do roteiro é que esta experiência toda foi traumática para Karen. Em muitas séries de ação, os personagens são expostos à situações de intenso perigo e depois continuam com suas vidas como se nada houvesse acontecido. Karen se tornou uma sobrevivente. Ela passa a temer sair sozinha e voltar para o seu apartamento, onde uma enorme mancha de sangue estampa o seu carpete. Ainda que a violência sofrida por ela não tenha sido de natureza sexual (Demolidor não tem cenas de estupro, que é o recurso mais frequente quando se trata de violência contra a mulher), o efeito causado na personagem se assemelha muito ao medo que muitas mulheres sentem nos espaços públicos de forma geral. Karen diz que não conseguem mais enxergar a cidade, ela só vê esquinas escuras. Quantas mulheres voltam para casa mais cedo ou deixam de sair por medo de sofrer alguma violência sexual? Quantas se sentem seguras em suas cidades? É um medo muito familiar. A história de Karen como sobrevivente é uma surpresa nesse universo originado dos quadrinhos onde é comum usarem a violência contra a mulher para causar efeitos, construir a personalidade e motivações nos homens que as cercam, ignorando por exemplo, a enorme resiliência que muitas sobreviventes possuem. Karen já era uma pessoa ética antes dos ataques, mas foi o trauma que fez com que sua determinação em expor a corrupção em Hell’s Kitchen se fortalecesse, ainda que isto significasse colocar a sua vida em perigo novamente.

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Matt e Karen são duas pessoas muito parecidas, eles tem os mesmos objetivos e muitos segredos. Matt mantém suas habilidades em segredo até mesmo de seu melhor amigo Foggy e Karen tem um passado misterioso que é vagamente mencionado na série. Ambos estão determinados a defender as pessoas de Hell’s Kitchen dos criminosos mais perigosos: os poderosos, o políticos e empresários que financiam crimes, principalmente o tráfico de drogas e de pessoas. Na verdade, toda a série do demolidor acontece em dois arcos narrativos paralelos: Enquanto Matt espanca bandidos para conseguir informação, Karen, junto com o jornalista Ben Urich, perseguem pistas em leilões, conversando com pessoas, pesquisando notícias na internet e registros em cartórios. Podemos perceber que Karen é praticamente tão protagonista quanto Matt, já que a história muitas vezes gira em torno de sua investigação e suas ações interferem diretamente no arco do Demolidor. Apesar de ser uma pessoa completamente normal, que não possui nenhum poder financeiro, nenhuma habilidade especial (como os sentidos apurados de Matt) e nem é treinada em qualquer tipo de luta, Karen é uma verdadeira heroína nesta primeira temporada de Demolidor.

O mais bonito na construção desta personagem é que ela demonstra um tipo diferente de força. Muitas vezes quem cria personagens femininas (seja para quadrinhos, filmes, séries ou livros) acaba por acreditar que empoderar uma mulher é colocá-la nos mesmos papéis que hoje cabem aos homens. Isso faz parte, é verdade, da ampliação dos papéis oferecidos às mulheres, mas também diz muito sobre como percebemos a masculinidade como força e a feminilidade como fraqueza. Karen não recusa em momento nenhum as características delas que são associadas ao feminino. Ela é gentil, doce, está sempre usando vestidos e saias, tem uma força física limitada, uma aparência considerada delicada, ela costuma demonstrar suas emoções e nada disso a torna menos importante ou menos poderosa do que os homens que a cercam. Karen é muito real, ela chora, se desespera, enche a cara, mistura o café com o dedo, é cheia de medos e nada disso a impede de ser muito badass.

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O passado de Karen é algo que certamente será usado contra ela em algum ponto. A Karen dos quadrinhos (no clássico A Queda de Murdock, de Frank Miller) se envolve na indústria pornográfica e se torna viciada em heroína. Na série, sabemos que Karen tem um passado que a desqualifica como fonte de Ben Urich. Aparentemente, alguns temas e idéias jogados na série de forma casual referenciam este passado. Por exemplo, uma das juradas de um julgamento de um cliente da N&M foi chantageada por ter um vídeo pornográfico, feito na juventude, que não gostaria que seus filhos descobrissem. Também sabemos que a heroína é a droga que está nas ruas de Hell’s Kitchen. Outra dica de que o vício pode voltar a ser um drama na vida de Karen é uma breve conversa que ela tem com Foggy, em que ele conta que já fumou maconha e ela menciona que maconha não é uma droga pesada e que é liberada em alguns estados, óbvio que esta conversa é totalmente inocente, mas há o subtexto para quem leu os quadrinhos. A série mostra de forma sutil que Karen pode ter algum problema com bebida, já que ela fica bêbada em vários episódios. Por fim, fica implícito que Karen já cometeu um assassinato antes e o encobriu de alguma forma. Apesar destes indícios, torcemos para que o futuro desta personagem divirja daquele oferecido nos quadrinhos.

É certo que esta personagem da série é muito diferente daquela dos quadrinhos. Dos destinos possíveis para a personagem, é bem provável que nas próximas temporadas Matt e Karen desenvolvam algum relacionamento romântico, já que é possível ver aqui e ali pequenos momentos de ternura trocados entre os dois. Há também algum sentimento em relação a Foggy. É mais um acerto da série que a situação afetiva dos personagens não seja tão simples de ser definida, muito parecido como o que acontece na vida real. Evidentemente, existem sentimentos não revelados, mas ela não é uma donzela em perigo esperando um herói romântico e não é o romance que define a sua jornada. Se por acaso ela se vê em perigo, não é por sua proximidade com o herói, mas porque suas descobertas ameaçam os jogos de poder. Algumas vezes ela consegue sair destas situações de perigo sem ajuda. Ela até prefere que seja assim, pois do seu ponto de vista é a investigação dela (e não a de Matt!) que representa perigo para as pessoas que ama. E enquanto Matt se esconde atrás da máscara, Karen está caminhando para ter seu nome muito bem marcado entre os criminosos que dominam Hell’s Kitchen.

É preciso tirar o chapéu: Demolidor não recorre a recursos preguiçosos, já exaustivamente usados para agradar uma parcela da audiência. Apesar de todas as mulheres da série Demolidor serem maravilhosas, eu creio que Karen é a personagem mais bem construída do MCU até este momento, ela é a prova de que os tempos da má representação feminina estão mudando e que construir melhor as personagens femininas só faz bem ao resultado final.


Gizelli Sousa

Arquiteta, feminista, prefere uma noite de maratona de séries do que sair para a balada.

Brasília/DF

Série Favorita: The Walking Dead

Não assiste de jeito nenhum: Gilmore Girls, The O.C., One Tree Hill, Girls, Love

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