Dizer que Penny Dreadful é apenas uma série ficcional de terror com personagens e referências da literatura mundial, é o mesmo que limitar alguém o reduzindo a um único adjetivo. A forma como a série se propõe a narrar a batalha de Vanessa Ives e seus aliados contra a força das trevas traz muitas outras nuances e mensagens importantes pelas quais se identificar ao longo do seu rico roteiro. Não por acaso, o episódio da semana – e que entra para o hall de ótimos episódios da série – nunca esteve tão atual para uma sociedade que ainda sangra pela barbárie cometida nos inúmeros atentados à vida, o mais recente, em Orlando.
Ambientada no século XIX, Penny Dredful discute pontos importantes como: a visão misógina da sociedade que, infelizmente, ultrapassa os séculos, assim como o preconceito intrínseco nas relações sociais, a aversão e a matiz da crueldade humana. Tudo isso, envolto na atmosfera mística e tensa da Londres vitoriana. Sendo que, o episódio ão só define os próximos passos dados rumo ao destino de Ives, como também desenvolve um pouco mais do arco envolvendo o passado de John Clare e o início dos conflitos entre Lily e Dorian, levando-a diretamente para as mãos do doentil Frankenstein.
“And then all light will end and the world will live in darkness.
The very air will be pestilence to mankind.
And our brethren, the Night Creatures, will emerge and feed.
Such is our power, such is our kingdom, such is my kiss.”
Assim como o poema Alastor, de Percy Bysshe Shelley, que narra a vida de um homem que persegue insistentemente a parte mais obscura da natureza em busca de “verdades estranhas em terras ainda não descobertas”, Ebb Tide mostrou a busca de Vanessa Ives por respostas capazes de levá-la ao encontro de Drácula. No entanto, conforme Catriona avisara Ives, o Dragão age por métodos diferentes aos utilizados pelo seu irmão ao tentar dominar Vanessa. E se uma das cenas mais aguardadas da temporada era justamente o embate entre Ives e Drácula, a surpresa na verdade vem com o discurso feito pelo pai dos vampiros. Que de certa maneira deixa claro à Vanessa que talvez tenha chegada a hora de parar de lutar contra a verdadeira natureza da moça. E antes que se pense que tudo estava a um passo de ser decidido com o simples apertar do gatilho de Ives, é importante lembrar que ela se envolveu emocionalmente com Drácula e partilhava sentimentos que a tiraram da constante sensação de solidão, dor e constante pesar.
Abraçar seu verdadeiro eu, aceitar que está destinada há algo muito maior do que a limitada sociedade é capaz de entender, apenas reforçam a ideia de que Vanessa está cada vez mais esgotada de agir de modo a se encaixar a isto ou aquilo. Seja aos padrões impostos uma hora pela própria religião, ou por vezes pela própria sociedade que na verdade sempre a viu como párea. O problema é justamente este, a forma como Drácula articula seu discurso de forma a fazer com que Ives acredite que não existe outro caminho senão ser o de aceitar quem ela seria verdadeiramente, a Mãe da Noite. Não mais negando a si mesma, pelo contrário, se orgulhando por ser quem ela de fato é.
O envolvimento amoroso entre eles trouxe de certa maneira um momento de conforto para a vida de Vanessa, que não mais se viu sozinha, como também foi capaz de se sentir segura e tranquila, como ela mesma reconhece ao dizer que não dormia tranquilamente há muito tempo. No entanto, a decisão de Ives em se entregar aos braços do vilão traz as trevas permanentes às ruas de Londres. E se no início da temporada pensávamos que poderia existir um embate entre Vanessa e Ethan, a aliança junto ao pai dos vampiros na realidade traz à tona a clássica batalha entre lobo e vampiro. E mesmo que caiba propriamente à própria Ives por fim à figura de Drácula, já que ela representaria uma entidade muito mais forte que ele como já previsto em momentos anteriores, o fato de ter decidido abraçar seu lado obscuro pode ter levado Vanessa muito mais longe do que se possa imaginar ou que Chandler esteja preparado para caminhar.
A visão de Kaetenay, por outro lado, enxerga Ethan como o escolhido dentre os Apaches para por fim ao domínio das trevas na Terra. Mas tal profecia só seria possível de acontecer, caso já estivéssemos com as trevas instituídas. O que acaba de acontecer, agora que Vanessa decidiu ceder aos encantos de Drácula. E, a considerar pelos segundos finais do episódio, o que sabemos é que o desafio de Ethan será um dos maiores já enfrentados pelo pistoleiro, uma vez que a as névoas que trazem consigo as trevas e os filhos de Drácula, impedem também a transformação de Chandler no Lupus Dei a impedir que a lua fique exposta. O que levaria um embate entre Ethan e a forma humana do Dragão. Porém, sabe-se que Drácula sempre foi um exímio estrategista por sempre ter vivido por baixo do radar da humanidade, sobrevivendo por séculos sem ser desmascarado. E ainda que Chadler conte com o apoio de Sir Malcolm e Kaetenay – e ouso dizer aqui Catriona e Seward – ainda assim a liga dos cavaleiros rumo ao resgate de Vanessa, pode não ser forte o bastante contra o exército da lendária figura romena.
Ao passo em que Vanessa buscava meios de localizar Drácula e partir para um embate contra o mal, John Clare que desde o excelente A Blade of Grass fora deixado de lado por mim, não intencionalmente, tem mais uma vez um dos momentos mais bonitos e emocionantes da temporada. O trabalho desenvolvido por Rory Kinnear no episódio quatro, nos emociona por pela riqueza e capacidade do ator em representar em uma mesma cena três diferentes personas. Porém, em Ebb Tide a emoção aparece na forma mais singela e bonita, no reencontro entre John Clare e sua esposa Marjorie e seu filho.
A busca de John pela companhia de Vanessa não só fortalece a amizade criada pela criatura e Ives, como destaca o amor e carinho que Vanessa tem por Mr. Clare desde que lembrara que ele foi um dos únicos a amá-la em um momento em que todos a haviam abandonado e em que ela estivera internada na clínica. Mais que isso, reforça através dos diálogos o quanto a solidão é prejudicial. E é justamente Vanessa quem dá a Clare o empurrão que ele precisa para tentar, mais uma vez, se reaproximar de sua família, já que mesmo ele se considerando um ser indigno da pureza do amor dos seus, ele nada mais é que uma vítima das circunstâncias e do ego de Victor Frankenstein. Tanto, que a cena em que John é recebido pela esposa e a sequência em que fora tocado e abraçado pelo filho são capazes de emocionar até o mais insensível dos telespectadores.
E mesmo que a sociedade encare John como um monstro, o homem casado com Marjorie e antigo funcionário da clínica onde Vanessa estivera internada, sempre procurou fazer o bem e prover pelo sustento da própria família. Sendo toda raiva apresentada no início da trama um efeito colateral dos experimentos de Victor que optou por deixá-lo sozinho e abandonado sem compreender o porquê de estar vivendo tudo aquilo, descobrindo as dores resultantes de ter renascido da morte. Porém, diferente do que acontecera com John, a segunda criação de Frankenstein, Lily, já renasce com suas memórias e é justamente delas que vêm a sede de vingança da mulher que um dia atendeu pelo nome de Brona Croft.
A dor vivida pela mãe no início do episódio ao sepultar sua filha se assemelha ao que Brona um dia passara já que sempre viveu em um período em que as mulheres são encaradas como seres criados para o entretenimento da figura masculina. Traída e humilhada mais de uma vez ao longo da vida. Brona representa inúmeras mulheres que sucumbem aos abusos e a violência por parte dos homens. Mulheres deixadas à margem e invisíveis socialmente falando. Usadas e descartadas com a mesma facilidade que qualquer outro objeto.
E se ao escrever a review passada eu havia apostado que seria Dorian o responsável por trair Lily, a forma como o imortal encarada a perda de controle na própria casa, ao deixar que Lily transformasse o palácio em um QG voltado ao seu exército de prostitutas e outras recrutas. As ações que transcorrem deixam isso claro e colocam Lily, que antes revivia os sentimentos de Brona pelas ações e o ardor de Justine, por exemplo, agora sob a ótica de uma Lily que jurou desde seu renascimento nunca mais se sujeitar a nenhum tipo de abuso por parte dos homens.
A cena em que Lily é capturada e acorda no laborátorio de Jekyll, no entanto, deixa clara ali a mensagem de que as mulheres ainda continuam como as principais vítimas do abuso de poder por parte dos homens. Uma vez que a proposta de Victor é transformá-la em uma dama “digna” de compor a sociedade. O que torna o roteiro mais uma vez atual, já que há pouco tempo vimos uma matéria repercutir na internet o pensamento misógino e que seria combatido com a hashtag #BelaRecatadaeDoLar. E mesmo que ainda não tenhamos visto como o soro criado por Jekyll e aperfeiçoado por Victor surtirá em Lily, a mensagem de abuso e violência contra a mulher é nítida e não deixa dúvidas que na realidade, em meio a tantas atrocidades cometidas por Lily até aquele momento, a imposição e prepotência impostas por Dorian, Frankenstein e Jekyll demonstram a monstruosidade presente em cada um destes homens. Movidos cada um com seu próprio sentimento na tentativa de subjulgar e anular o que representa Lily.
Com o caos instituído em Londres após Vanessa se deixar conquistar por Drácula, o que se pode esperar para o próximo episódio – que será duplo – é a conclusão da batalha entre o Lobo e o Dragão. Mas como eu disse no início no texto, Penny Dreadful é muito mais que uma série sobre seres da noite. É o resultado de um excelente roteiro e atuações capazes de fazer da série mais que um excelente show, uma obra de arte.
Recorrendo às promos por não conseguir me conter diante dos últimos acontecimentos, vi que o episódio de domingo será duplo. E aí, o que acha disso?
Não deixa de contar suas impressões aqui embaixo e te vejo na próxima review!
