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Sherlock – Vale cada Minuto!

Por: em 6 de julho de 2011

Sherlock – Vale cada Minuto!

Por: em

Sherlock Holmes é um dos personagens mais icônicos da literatura policial e o detetive mais famoso do mundo. Ao publicar Um Estudo em Vermelho, livro de estreia do personagem, em 1887, sir Arthur Connan Doyle fez uma das mais significativas contribuições à identidade cultural do Reino Unido, dando origem ao personagem sobre o qual escreveria pelos próximos quarenta anos. Foram sessenta histórias escritas pelo autor original, entre romances e contos, constituindo o que nós, fãs, batizamos de Cânone Sherlockiano. Entretanto, a obra de Doyle prova sua atemporalidade até hoje, mais de oitenta anos depois da morte de seu célebre criador. Sherlock e Watson, a dupla mais icônica do romance policial, inspiraram muitos outros autores (notavelmente, Agatha Christie, criadora de Hercule Poirot e Arthur HastingsGeorges Simenon, “pai” do inspetor Maigret, e David Shore, o criador do rabugento doutor House e seu amigo oncologista Wilson), bem como inúmeras adaptações, continuações não-canônicas e releituras, especialmente depois dos direitos sobre os personagens terem caído emdomínio público, em 1980. Entre estas mais de 25,000 versões (segundo Ronald B. DeWaal, autor da enciclopédia The Universal Sherlock Holmes), temos obras questionáveis, como a recente cinesérie de Guy Ritchiee Robert Downey Jr., e criações inteligentes, divertidas e cuidadosamente elaboradas, como é o caso de Sherlock, esta minissérie da BBC One.

Adaptações modernas das aventuras de Holmes não são novidade. Tivemos projetos interessantes, como a mini-série The Art of Deduction (assista ao trailer), projeto de alunos da Universidade de Nottingham, e outros duvidosos, como o desenho animado Sherlock Holmes no Século 22, onde um clone de Holmes soluciona mistérios em uma Londres futurista. Entretanto, o conceito de reinterpretação contemporânea é considerado no mundo do entretenimento tão controverso quanto o de viagens no tempo ou o de universos paralelos, e bombas como o recente As Viagens de Gulliver acabam eclipsando o mérito de boas obras, como o já clássico Romeu + Julieta . Por isso, assim como qualquer fã do Grande Detetive, fiquei com um pé atrás quando ouvi sobre esta versão, mas o bom material promocional liberado pela BBC (e a experiência da emissora em adaptações de clássicos da literatura), as boas críticas que o primeiro episódio recebeu e indicações de amigos que também acompanhavam Holmes na literatura me incentivaram a dar uma chance à produção, que mostrou-se uma grata surpresa.

O projeto nasceu de uma conversa entre Steven Moffat (showrunner de Doctor Who) e Mark Gatiss (ator, diretor, produtor, roteirista e amigo pessoal de Moffat, que inclusive escreveu vários episódios de Doctor Who e emprestou sua voz ao personagem Danny Boy) sobre a utilização de literatura clássica na criação de obras de ficção que se passam nos dias atuais. Os amigos debateram sobre fazer ou não uma versão moderna das histórias de Conan Doyle durante meses, até Sue Vertue, mulher de Moffat, dar o empurrão que eles precisavam, comprometendo-se em produzir a série.

O primeiro piloto, considerado um dos mais caros da história da indústria, foi produzido em janeiro de 2010, e desagradou tanto a BBC que a emissora decidiu diminuir o número de episódios da primeira temporada da série e mudar sua estrutura. O episódio foi engavetado e nunca exibido, mas a notícia de que a emissora não gostou do que viu não fez nada bem à credibilidade do projeto, que já não era muito sólida. Mas as mudanças fizeram muito bem à adaptação, e o que foi ao ar no dia 25 de Julho do ano passado foi um drama policial sólido, maduro, desafiador e com toques de humor britânico e genialidade.

premissa todo mundo já conhece: detetive excêntrico, porém genial, que usa a ciência da dedução para solucionar os casos nos quais a polícia britânica falha, passa a dividir apartamento com médico veterano de guerra, que escreve sobre as aventuras de seu novo amigo. O cenário é (quase) o mesmo: a megalópole Londres, particularmente 221B Baker Street, endereço cuja senhoria é a simpática Sra. Hudson. O grande diferencial desta releitura é que ela não se passa no século XIX, com carruagens, cartolas, pince-nez e roupas de alfaiataria, mas sim em 2010, comsmartphones, laptops, câmeras de vigilância e TV à cabo. A solução que Moffat, Vertue e Gatiss encontraram para não afastar da série os fãs do Sherlock dos livros foi preservar a elegância e a sensação de frescor, de desafio mental, passadas pelas histórias originais, por meio de um figurino que passeia pelo clássico e pelo preppy e atinge seu ápice no dândi moderno (que inclusive inspirou a grife 2nd Floor em sua coleção de inverno) e de uma fotografia que abusa de interessantes recursos gráficos, como o conteúdo das mensagens de texto que aparecem flutuando ao lado de quem as escreve, e que dão aos fãs um vislumbre do raciocínio de Holmes. Eles conseguiram encaixar os arquétipos clássicos da obra de Conan Doyle em um cenário moderno, sem grandes prejuízos.

A Study in Pink, o primeiro dos três telefilmes que constituem a primeira temporada da série, dá o tom: por meio de um Watson reservado e ávido por adrenalina, interpretado pelo hobbit Martin Freeman, somos introduzidos ao Sherlock egocêntrico e ligeiramente andrógino de Benedict Cumberbatch, que é tão afiado, ágil e prepotente quanto o roteiro. O episódio inteiro é grandiloquente, das locações aos personagens de apoio, e logo em suas primeiras cenas prova a habilidade da série de manter-se fiel ao material em que se baseia e ao mesmo tempo original e novo: o texto não dispensa o romance Um Estudo em Vermelho, mas o usa como referência, introduzindo alusões bem colocadas em momentos-chave. Ao mesmo tempo que não é completamente independente, não se contenta em ser apenas um reboot dos livros, mas sim uma reimaginação completa de personagens e situações que já conhecemos: assim, consegue ser atraente para novos fãs, sem desprezar o conhecimento dos sherlockianos de longa data, “brincando” com ele (SPOILER: por exemplo, durante o episódio todo, somos levados a acreditar que o personagem de Mark Gatiss é o grande vilão Moriarty, e no final nos é revelado que ele é uma versão mais antagônica – e magra – de Mycroft Holmes).

Já o segundo episódio, The Blind Banker, o menos querido pelo público, não decepciona, mas não consegue manter o altíssimo padrão de seu antecessor. Entretanto, longe de ser um desastre, esse episódio mais calmo vem para reafirmar os diversos méritos dessa modernização. A química entre Watson e Holmes continua perfeita, o ritmo é mais frenético do que no episódio anterior, para compensar o caso menos interessante, cenários, fotografia e figurino permaneceram impecáveis, o clima charmoso e sombrio da Londres moderna ainda fascina, mas dessa vez o roteirsta Stephen Thompson focou-se mais nos aspectos originais da série do que nas histórias em que se baseia.

O roteiro continua permitindo que o telespectador acompanhe todo o processo investigativo e interaja com ele, colocando-nos em uma posição bem mais participativa e menos passiva do que os leitores dos contos e romances clássicos do personagem estão acostumados, de modo a atender as expectativas da audiência do século XXI, e esta é uma das mais louváveis qualidades de Sherlock: adaptar o mundo de Holmes para esta década só para colocar o detetive mandando SMSs e Watson registrando suas memórias em um blog ao invés de livros seria bobo e sem sentido; o grande objetivo desta adaptação é trazer Holmes para o público moderno, enfrentando problemas modernos e valendo-se de ferramentas do mundo moderno, mesmo que isso signifique que algumas características das obras originais tenham de ser deixadas de fora (qual a necessidade da trupe de garotos que o Sherlock original mantinha nas ruas para obter informações, na era da internet?).

Uma das mais divertidas consequências desta adaptação dos personagens para a vida moderna é a ambiguidade mantida em relação à sexualidade de Holmes, questão que no século XIX nunca seria levantada, mas que é constantemente debatida entre os fãs nos dias atuais. Enquanto os mais conservadores acharam que as insinuações homo-afetivas entre Holmes e Watson descaracterizaram os personagens e macularam o laço de amizade entre os dois, que é provavelmente o mais sólido da literatura mundial (quem leu o conto Os Três Garridebs sabe do que eu estou falando), muitos fãs são entusiastas desse relacionamento. A verdade é que muitas características psicológicas dos personagens, que eram apenas insinuadas nos livros, foram potencializadas na série (Holmes, inclusive, se descreve como um sociopata funcional), o que levou a um estreitamento dos laços entre os dois amigos, sendo essas sugestões apenas uma maneira bem humorada de se abordar esse relacionamento.

O nome do terceiro episódio, The Great Game, faz alusão ao “Grande Jogo“, uma espécie de brincadeira entre alguns sherlockianos, que consideram a hipótese de Sherlock, Watson, Lestrade, Moriarty e companhia serem personagens históricos, que realmente existiram e viveram na Londres do século XIX, frisando a humanização dos personagens proposta por essa releitura. No episódio, entretanto, o “jogo” é uma sufocante batalha intelectual entre Sherlock e seu arqui-inimigo Jim Moriarty, que ganha um tom psicótico na interpretação de Andrew Scott, sendo aqui um gênio louco obcecado por Holmes, e não o “chefão” do crime que via o detetive apenas como uma pedra em seu sapato do conto O Problema Final. O episódio deixou-nos com o cliffhanger mais desesperador da midseason de 2010, e estamos esperando sua resolução até hoje. Só recentemente notícias sobre a segunda temporada (que também terá a injusta duração de três episódios, dessa vez todos completamente baseados nos contos e romances) começaram a aparecer, e o retorno desta premiada produção, que começou desacreditada e foi vista com certo preconceito, mas hoje já se tornou exemplo de adaptação competente e prestigiada pelos fãs de Conan Doyle, promete muito.

Cortando o que se tornou obsoleto, trazendo novos elementos que se fazem necessários e mantendo a essência dos livros, as mentes criativas por trás da minissérie alcançaram seu objetivo: mostrar que o mundo da tecnologia de ponta, dos CSIs e agentes do FBI ainda precisa da genialidade de Sherlock e da fidelidade de Watson, provando definitivamente a imortalidade desses personagens clássicos.

PS.: A BBC lançou um álbum com a trilha sonora instrumental da minissérie, composta por David Arnold e Dominik Hauser, vale muito a pena dar uma conferida.

PS2.: O já citado blog do Watson e o site do Sherlock, The Science of Deduction, têm influência direta na série, não são sendo apenas um “adorno” ou uma curiosidade.


João Miguel

Bela Vista do Paraíso - PR

Série Favorita: Arquivo X

Não assiste de jeito nenhum: Reality Shows

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